Das metáforas neotestamentárias que descrevem a obra redentora de Deus em Cristo, a da reconciliação é a que tem recebido menos atenção nas teologias sistemáticas de igrejas evangélicas em geral. Ela perde terreno para a metáfora da justificação (a mais forte entre luteranos), para a da soberania de Deus (a mais forte entre calvinistas), para a da santificação (a mais forte entre metodistas), para a da salvação (a mais forte entre batistas), para a do batismo do Espírito (a mais forte entre pentecostais) e para a da libertação (a mais forte no ecumenismo latino-americano) (1). Em um mundo plural, entretanto, a metáfora da reconciliação merece receber especial atenção devido ao seu potencial para a restauração da amizade e harmonia entre pessoas, religiões e povos.
O texto básico deste ensaio será a segunda parte do hino cristológico de Colossenses 1,15-20, mas desejo começar citando a afirmação paulina de que Deus “nos confiou o ministério da reconciliação” e nos “encarregou da palavra da reconciliação” (2 Coríntios 5,18.19). Se buscamos um conceito teológico fundante para o ministério do diálogo inter-religioso, aqui o encontramos. O diálogo inter-religioso se faz a partir da vocação do povo de Deus para a reconciliação, em Cristo, de todas as coisas com Deus, e de todas as pessoas umas com as outras e com toda a criação divina. A origem, a finalidade e o caminho do diálogo inter-religioso são um e o mesmo: a reconciliação de toda a criação com Deus, em Cristo.
Dito isto, passo ao estudo da segunda estrofe do hino cristológico em Colossenses, a fim de descrever teologicamente a metáfora da reconciliação — aplicando-a à temática de nossa reflexão, em perspectiva evangélica latino-americana (2).
1. A estrutura do hino
O hino (3) possui duas estrofes articuladas em paralelismo, que celebram a ação de Deus em Cristo (a) na criação, primeira estrofe – v. 15-17; e (b) na reconciliação, segunda estrofe – v. 18-20. O vocábulo mais repetido no hino, em diversas formas, é o advérbio tudo, todas as coisas, destacando o caráter cósmico, plenamente abrangente do agir crístico de Deus. A linguagem do hino provém de três ambientes discursivos: (a) da tradição sapiencial judaica (imagem, primogênito, criador, antes de tudo etc.); (b) dos discursos religiosos helênicos, tanto gentílicos como judaicos, com sua crença em anjos, demônios, deuses e semideuses (principados, potestades, cabeça do corpo, plenitude etc.); e (c) do discurso imperial romano, tanto em sua vertente ideológica (o império romano como a expressão da verdadeira paz e salvação), quanto em sua vertente diplomática (a concórdia baseada na amizade, paz e reconciliação entre povos).
Ele é a imagem do Deus invisível
o primogênito de toda a criação
pois nele foram criadas todas as coisas
nos céus e na terra
as visíveis e as invisíveis
tronos ou soberanias
poderes ou autoridades
todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele
e nele tudo subsiste
Ele é a cabeça do corpo, que é a igreja
é o princípio e o primogênito dentre os mortos
- para que em tudo tenha a supremacia
pois foi do agrado de Deus que
nele habitasse toda a plenitude
e por meio dele reconciliasse todas as coisas
tanto as que estão na terra
quanto as que estão nos céus
estabelecendo a paz
pelo seu sangue derramado na cruz.
2. A mensagem do hino (4)
Tradicionalmente, a linguagem da carta aos Colossenses era entendida exclusivamente como de natureza religiosa (5). Entretanto, recentemente, especialmente por influência da exegese latino-americana, mais estudiosos têm prestado atenção ao caráter político da linguagem do hino. Além de exegetas latino-americanos, vários autores norte-atlânticos têm notado a dimensão política dos termos já citados, bem como das metáforas da cabeça do corpo, da reconciliação e do fazer a paz — todas elas, de uma forma ou outra, vinculadas à linguagem da diplomacia e da ideologia do Império Romano (6). De fato, tais estudos deram novo vigor a antigas hipóteses interpretativas dos termos principados e potestades, abandonando formas dualistas de interpretação, e constatando que os mesmos se referem, simultaneamente, a poderes terrenos e celestiais, políticos e angelicais. O abandono de modelos dualistas de interpretação da Bíblia é fundamental para melhor entendê-la e também para a elaboração de uma teologia das religiões e uma missiologia do diálogo inter-religioso — pois este também não pode ser compreendido dualisticamente, mas compreendido e praticado na integralidade das relações que religiões e instituições religiosas mantêm com a sociedade, a cultura e a política.
É a partir dessa percepção das dimensões cósmico-religiosa e política da linguagem do hino, que destacaremos as principais características de sua mensagem, com especial atenção para uma releitura do mesmo a partir da temática do diálogo inter-religioso.
2.1. Jesus Cristo: Reconciliador de toda a humanidade em um só povo
Na segunda estrofe do hino (v. 18-20), o tema passa da criação para a nova criação: Jesus, o agente, meio e alvo da criação é descrito, agora, como a cabeça do corpo, que é a igreja (7). A metáfora da cabeça indica tanto senhorio como fonte de vida. A igreja existe em Jesus e vive em submissão a ele. Ele é muito mais do que seu líder (redução provocada pela alteração da metáfora para o cabeça), ele é a fonte e a razão de sua existência. Em paralelismo sinônimo, uma segunda qualificação de Jesus é apresentada: ele é o primogênito dentre os mortos (o primogênito da nova criação), ou seja, o primeiro a ressuscitar e não mais morrer; aquele que estabelece uma nova era histórica — e recebeu, por isso, do Pai, a supremacia sobre tudo quanto existe — na criação e na nova criação.
A utilização destas metáforas nos remete à concepção paulina do pecado que é uma realidade beligerante e desarticuladora — cria inimizade (por isso Deus reconcilia o mundo consigo e exorta seu povo à reconciliação) e divide a humanidade internamente (na ótica de Paulo, a humanidade sem Cristo é dividida ente judeus e gentios, homem e mulher, bárbaro e civilizado, escravo e livre) e em sua relação com a parcela não-humana da criação divina.
Se levamos em consideração, primeiramente, as divisões religiosas, a ação reconciliadora de Deus em Cristo, como o Senhor da nova criação, tem como efeito fundamental a reunificação da humanidade cindida entre judeus e gentios (binômio que representa todas as divisões religiosas particulares). Por causa da pecaminosidade humana, o povo abraâmico ficou, por muito tempo, reduzido a uma só etnia (a judaica), e criou-se uma barreira de separação entre Israel e os povos gentios. Sem Cristo, os gentios eram “privados da cidadania em Israel, estranhos às alianças da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo” (Efésios 2,12).
A própria lei de Deus se tornou o principal obstáculo à unidade humana, tendo em vista que demonstrou a incapacidade do ser humano de ultrapassar os limites do pecado e realizar, por si mesmo, a vontade de Deus (Efésios 2,15, cf. Romanos 1,18-3,23). De fato, a lei cumpriu seu propósito: demonstrar a pecaminosidade humana e a necessidade de Deus assumir não só a iniciativa, mas também a realização histórica da reconciliação — o que fez em Cristo Jesus. Como clímax de seu plano, Deus enviou Seu Filho, “nascido sob a Lei, nascido de mulher” cuja vida, morte e ressurreição trazem a reconciliação à humanidade; não só a reconciliação com Deus, mas também o rompimento da barreira religiosas entre os seres humanos.
A restauração da unidade humana é um dos principais efeitos da supremacia de Cristo na nova criação. Este tema, presente de forma implícita no hino, aludido no verbo “fazendo a paz”, é detalhado em Efésios 2,11-22. Aos gentios, afastados da aliança, Cristo nos aproxima de Deus pelo seu sangue (2,13). E, por meio dele, temos pleno acesso ao Pai, pelo Espírito (2,18.22). Em Jesus, o novo Adão, encontramos a “nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade. Em sua carne destruiu o muro de separação, o ódio. Ele aboliu a lei e os mandamentos com suas observâncias.” (Efésios 2,14s).
Assim, a fidelidade de Deus ao seu projeto original é mantida, e Seu plano histórico é cumprido e uma nova humanidade começa, escatologicamente, a se desenhar. Uma nova humanidade em Cristo Jesus, criada “segundo Deus na justiça e na santidade que vêm da verdade” (Efésios 4,24). A reunificação da humanidade são as primícias da nova criação, primeiro passo na direção da consumação da reconciliação cósmica, que é a restauração da amizade fundante do ato criador de Deus.
A unidade entre criação, restauração e consumação escatológica é determinante para compreendermos a reconciliação. Na linguagem de Barth:
Reconciliação é a restituição, a retomada de uma comunhão, outrora existente, mas ameaçada de dissolução. É a manutenção, restauração e sustentação dessa comunhão em confronto com um elemento que a perturbe e desestrutura. É a realização do propósito original que subjaz e a controla, tanto no confronto com, quanto na remoção dessa obstrução. A comunhão que originalmente existia entre Deus e ser humano, que foi então perturbada e ameaçada, cujo propósito é agora cumprido em Jesus Cristo e na obra da reconciliação, nós a descrevemos como a aliança.” (8)
Como ato escatológico de Deus, a reconciliação funda o compromisso missionário do povo de Deus, especialmente em sua dimensão da busca da concretização da restauração da unidade da humanidade — tão dividida em termos étnicos, culturais, políticos e religiosos. O diálogo inter-religioso é um dos caminhos missionários da reconciliação, mas desde que praticado na integralidade do projeto restaurador da aliança entre Deus e sua criação. Esse é o alvo do diálogo inter-religioso: não uma religião mundial, mas uma humanidade re-unificada consigo mesma e com Deus, verdadeira parceira da aliança divina.
2.2. Jesus Cristo: Reconciliador de todos os poderes
Voltando ao hino, a simetria entre as estrofes aponta claramente o fator que impede a restauração da unidade humana — os poderes. Para Paulo, todos os poderes— humanos e sobre-humanos — foram criados por Deus e a Ele estão subjugados. Isso não é o mesmo que afirmar, entretanto, que tais poderes sejam obedientes a Deus. Ao contrário! Os poderes se opõem a Deus e tentam usurpar o senhorio exclusivo de Jesus Cristo. O senhorio messiânico é de natureza escatológica, ou seja, está inaugurado mas não consumado, ainda se manifesta sob o signo da fraqueza do Filho encarnado. No contexto da igreja de Colossos, a celebração do senhorio cósmico de Cristo possui a conotação de fé e esperança, pois que realizada em um ambiente religiosa e politicamente hostil, no qual os cristãos eram absoluta minoria. Celebração de fé e esperança, no culto, que exige confronto com os poderes e discernimento na vida:
Jesus Cristo é o único Senhor. Ele está acima de todos os poderes cósmicos e políticos. Ele é a Cabeça, no sentido de Princípio ativo de onde toda vida promana. É o Chefe que determina e subjuga todas as forças da história e todas as forças dos poderes políticos. A Cruz é a manifestação da vitória e do poder do Senhor que subjuga as forças e os poderes do mundo (Colossenses 2,15). A mensagem do hino é um apelo ao discernimento de Cristo Cabeça, no meio de tantas especulações filosóficas e religiosas: ‘Ele é a Cabeça, pela qual todo o Corpo, alimentado e coeso pelas juntas e ligamentos, realiza o seu crescimento em Deus’ (Colossenses 2,19). (9)
É a partir do confronto com os poderes que chegamos ao tema da reconciliação de todas as coisas, nos céus e na terra — o que inclui os seres sobrenaturais, deuses, anjos, demônios ou daimonia, bem como todos os tipos de poderes terrestres (v. 19-20; cp. 2 Coríntios 5,19). Na seção anterior, tematizamos a reconciliação da humanidade; nesta, o foco recairá sobre a reconciliação dos poderes.
Em que consiste a reconciliação dos poderes, primeiramente dos poderes angelicais e demoníacos que, nas culturas antigas, eram cridos como forças que determinavam a vida das pessoas? Basicamente, consiste no despojamento escatológico de sua condição de senhores (Colossenses 2,15 e Efésios 1,20-23), ou seja, sua subordinação ao soberano agir reconciliador de Jesus Cristo que, como Senhor escatológico — exaltado a essa condição pelo Pai mediante a sua ressurreição (Efésios 1,20-23) —, restringe a possibilidade de ação desses poderes — tanto sobre os cristãos como sobre o mundo em geral, até que eles venham a ser efetivamente derrotados, totalmente subordinados a Deus e anulados em seu agir conforme I Coríntios 15,24; Efésios 1,10.
Para o diálogo inter-religioso, a afirmação neotestamentária do senhorio único de Jesus Cristo é um fator inevitável de tensão. Várias camadas de pensamento eclesiástico, porém, precisam ser removidas da leitura desta afirmação bíblica, a fim de que ela seja melhor entendida e não seja reduzida a uma afirmação meramente institucional, particularista. Em primeiro lugar, é preciso romper a camada da identificação da fé em Cristo com a membresia a uma igreja cristã. É preciso abandonar a antiga afirmação de que “fora da igreja não há salvação”, e substituí-la pela mais ousada e bíblica afirmação de que só em Cristo há salvação. Nenhuma instituição cristã, por mais ortodoxa que seja, é a fonte da salvação. No campo evangélico do cristianismo atual, precisamos romper com a hegemônica noção de que o alvo e critério da missão é o crescimento numérico da igreja. As igrejas são apenas instrumentos do reinado de Deus, e não o próprio reinado! O alvo e o critério da missão são o crescimento do senhorio de Cristo, e não o da igreja.
A segunda camada a ser removida é a identificação do Cristo com o a Cristandade, ou seja, a instituição eclesiástica aliada aos poderes políticos. Os inimigos da reconciliação não são os seres humanos, nem a criação que geme, mas os poderes que se insurgem contra o senhorio de Jesus Cristo. Nele, percebemos que o Pai não é só o “nosso” pai, mas o pai de “toda família, na terra e céus” (Efésios 3,14-15)(10). Nele, percebemos que Deus aceita em sua família aquelas pessoas que o buscam sinceramente, mesmo quando não O buscam na “igreja”, como Cornélio, exemplo vivo da reconciliação inclusiva de Deus em Cristo (Atos 10,4.31). Nele, aprendemos que Deus “retribuirá a cada um segundo as suas obras; a saber: a vida eterna aos que, com perseverança em favor do bem, procuram glória, e honra e incorrupção [...] glória, porém, e honra e paz a todo aquele que pratica o bem, primeiramente ao judeu, e também ao grego; pois para com Deus não há acepção de pessoas” (Rmanos 2,6-11).
A terceira camada a ser removida é a da identificação da espiritualidade reconciliadora com a ética e espiritualidade ocidentais e classistas. O povo reconciliado com Deus, em Cristo, não tem um único estilo de vida, uma única espiritualidade que, em algumas igrejas evangélicas, é apenas o estilo de vida da classe média consumista do capitalismo contemporâneo. A espiritualidade cristã é radical, pois a reconciliação vai à raiz dos problemas do ser humano. A espiritualidade cristã é integral, pois a reconciliação divina é integral. Precisamos abandonar a espiritualidade individualista, dualista e moralista da maior parte das igrejas cristãs ocidentais, e assumir ousadamente o compromisso com a espiritualidade integral da reconciliação. Contamos, aqui, com a colaboração de Bevans e Schroeder:
A reconciliação possui diferentes níveis, e a igreja deve se envolver, conforme sua capacidade, em cada um deles. Em primeiro lugar, há o nível pessoal da reconciliação [...] Um segundo nível de reconciliação pode ser chamado de reconciliação cultural [...] Um terceiro nível é a reconciliação política [...] Em último, mas não inferior aos demais, há a reconciliação dentro da própria igreja. (11)
Devemos acrescentar o nível da reconciliação ecológica e afirmar o chamado de Deus para o seu povo praticar uma espiritualidade integral — um novo estilo de vida que transforme as dimensões pessoal, cultural, política, eclesial e ecológica da vida. Não há forma mais eficaz de compromisso com a restauração cósmica do que uma vida vivida plenamente conforme o senhorio reconciliador de Deus em Cristo.
Tudo isto significa que devemos abrir mão da dimensão evangelizadora da missão? De modo nenhum! Como afirma Eduardo Pedreira:
Na realidade, o que propomos é caminhar por vias já trilhadas, mas com um novo comportamento. Buscar a via da evangelização, mas evangelização inculturada e não evangelização imposta. Buscar a conversão, mas não a conversão a uma determinada cultura que se pretende universal, e sim ao Evangelho. Somente assim acharemos um meio de dialogar até onde esse diálogo não sufoque o anúncio, sem, contudo, permitir que o anúncio corte a possibilidade do diálogo. (12)
2.3. Jesus Cristo, um novo caminho para o exercício do poder
Voltando nossa atenção para a dimensão política, em sentido estrito, da ação reconciliadora de Deus celebrada no hino, encontramos dura crítica contra a ideologia da pax romana. Para o Império Romano, a paz era a ausência de revoltas, implantada mediante a subjugação dos povos conquistados pela força. Sêneca, falando a respeito do imperador, chefe do exército romano, assim descreve a pax romana:
Ele é, pois, o laço pelo qual a comunidade permanece unida, ele é o sopro de vida que tantos milhares inspiram, que por si sós não representariam mais do que fardo e espólio, se aquele espírito fosse tirado do Império: 'enquanto o rei permanece com vida, todos permanecem unânimes, se ele for perdido, eles quebram a fidelidade'. Esta desgraça será o fim da paz romana, isto fará cair em ruínas a felicidade de tão grande povo; este povo estará longe deste perigo enquanto souber suportar os freios. Uma vez que os tenha rejeitado, ou não suportar que as rédeas, caso tenham sido jogadas ao chão por algum acaso, lhe sejam colocadas novamente no dorso, então esta unidade e este sistema do maior domínio cairá quebrado em muitas partes e para esta cidade o fim da obediência identificar-se-á com o fim do dominar. (13)
Não pode haver paz, de fato, onde há violência e dominação. A paz dos impérios jamais deixou de ser uma falsa paz, o encobrimento da violência e da dominação por uma retórica de progresso, harmonia e felicidade. Assim foi com os romanos, assim foi na guerra fria, assim é no império globalizado do modo de viver capitalista ocidental em nossos dias. Onde julga necessário, o império atual não se recusa ao uso das armas. Em geral, porém, prefere a estratégia da violência e dominação simbólicas — o anúncio do pseudoevangelho do capitalismo como único caminho, verdade e vida. Disfarçada de progresso, desenvolvimento científico, democracia e prosperidade, o modo de vida capitalista estende seus tentáculos com vistas a dominar todas as nações e povos. Como o antigo império romano, o império contemporâneo exerce o poder de forma violenta e dominadora. Em um mundo assim articulado, não há lugar para diálogo, apenas para o conflito inter-religioso, com vistas à implantação de uma única fé — a fé em Mamom.
O exercício do senhorio de Cristo, porém é totalmente distinto. É um senhorio que não conquista, mas reconcilia; não gera uniformidade, mas unidade. É um senhorio sem estratégias, mas com relacionamentos. Um senhorio cujo poder é exercido pelo Deus que faz a paz mediante a morte do seu próprio Filho, e não a dos seus inimigos. Na tradição judaico-cristã, a paz (shalom) é a plena harmonia que Deus estabelece na sua criação, com destaque — neste contexto — para a justiça social, econômica e política que é a harmonia cósmica aplicada à convivência humana. Para restaurar a harmonia rompida da criação, Deus entrega Seu Filho à morte reconciliadora em benefício da criação alienada do Pai. Ou, nas palavras do próprio crucificado: “o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir, e dar a sua vida em resgate de muitos” (Marcos 10,45).
Enquanto nas discussões ecumênicas contemporâneas pode parecer atrativo tentar redefinir oikoumene em um sentido positivo, necessitamos lembrar que na literatura cristã primitiva oikoumene era, primariamente, um termo do império, raramente usado em um contexto libertador. [...] O desafio para o ecumenismo atual deve ser o de repudiar a trajetória imperial da palavra, incluindo o próprio legado imperial da igreja. (14)
Podemos vislumbrar a igreja, aqui, como o protótipo da nova criação, a antecipação escatológica da reconciliação cósmica de Deus — a comunidade missionária. A paz de Cristo deve afetar todo o modo de ser da igreja. O tempo não nos permite abrangência aqui, por isso, aponto apenas três exemplos:
Do ponto de vista da adoração cristã, a afirmação do senhorio de Cristo sobre os poderes nos convida ao culto público e à piedade privada nos quais “a oração cristã [seja, também] negação das pretensões dos poderes do imperialismo, e [...] discernimento constante da manifestação da força da cruz diante dos poderes que determinam a história.” (15) O culto cristão, no templo e na vida, não pode ser alienado nem alienante. Não pode ser individualista, nem consumista, mas culto e vida públicos, ou seja, efetivamente comprometidos com o bem-estar de toda a sociedade e de toda a criação de Deus.
Do ponto de vista da ação social dos cristãos, devemos crescer missiologicamente
até que os evangélicos percebam a possibilidade de existir confiança e participação com outros atores sociais além daqueles que professam a mesma fé, podendo, inclusive, compartilhar de redes com grupos que hoje são demonizados. Certamente este é o maior impedimento ou a maior deformação do capital social produzido neste meio, o qual tem como consequência uma significativa fragilidade que serve de impedimento para o estabelecimento de redes mais amplas e diversificadas. Um ambiente de tolerância e respeito torna-se fundamental para que efetivamente os avanços oferecidos pela formação dessas diferentes comunidades cívicas, as quais são acessíveis a uma massa de excluídos praticamente inatingida, ofereça capital social suficiente para manter e aprofundar a democracia brasileira. (16)
Do ponto de vista do diálogo inter-religioso, a paz de Cristo exige uma comunidade plenamente cônscia de sua identidade transformada e transformadora. O diálogo inter-religioso não pode ser visto como uma ameaça à identidade da igreja, ou como um obstáculo à fidelidade à Palavra de Deus. Dialogar exige autenticidade e demanda que os parceiros envolvidos no diálogo mantenham sua legítima identidade, pois
os diálogos inter-religiosos ficam comprometidos quando as religiões perdem o seu perfil social, diluindo-se em tendências passageiras, de difícil apreensão. Não se pode dialogar com uma religiosidade difusa, e o encontro entre religiões nem chega a acontecer quando os parceiros se constituem de indefinidas transições entre as religiões, perdendo-se em formas híbridas de toda espécie. (17)
O que ameaça a integridade da igreja não é o diálogo inter-religioso, mas o sincretismo com a cultura consumista e hedonista de nosso tempo, que se disfarça de êxtase religioso e prosperidade espiritual. É o conformismo com o mundo, e não o amor missionário que nos pode fazer perder o rumo.
Conclusão
O tema do diálogo inter-religioso é extremamente exigente e desafiador para nós evangélicos. Exige que voltemos à Escritura e interpretemos seus textos a partir de um novo lugar — não mais o lugar da cátedra da verdade, mas o lugar da busca humilde do conhecimento de Deus. Desafia-nos a avaliar nossa espiritualidade, teologia e prática missionária à luz dos critérios bíblicos da soberania e da reconciliação de Deus, em Cristo. Que o Espírito de Deus nos encha de discernimento, sabedoria e coragem para compreendermos e praticarmos o diálogo inter-religioso para a glória de Deus e o bem-estar de toda a sua criação.
Notas
(1) Na teologia sistemática, as duas exceções fundamentais no século XX são Karl Barth (vol. IV de sua Church Dogmatics) e Wolfhart Pannenberg (vol. 2 de sua Systematic Theology), que desenvolvem seu conceito da obra salvífica de Deus ao redor do eixo temático da reconciliação. Nos estudos missiológicos, podemos encontrar situação semelhante. No clássico da missiologia evangélica, Missão Transformadora (BOSCH, David J. São Leopoldo: Sinodal, 2007, 2ª. ed., original de 1991), o tema da reconciliação não é enfocado; já na missiologia de BEVANS & SCHROEDER (Constants in context: a theology of mission for today. Maryknoll: Orbis Books, 2004), embora poucas páginas sejam dedicadas ao tema, afirma-se a reconciliação como um novo paradigma para a missiologia (pp. 384-392).
(2) A discussão teológica sobre diálogo inter-religioso é muito mais intensa nos âmbitos do ecumenismo e do catolicismo romano. Devo mencionar que este tema não estava incluído na discussão evangélica sobre a missão no âmbito dos Congressos Brasileiros de Evangelização (SILVA, Serguem (org.). Missão Integral: Proclamar o Reino de Deus, vivendo o evangelho de Cristo. Belo Horizonte: Visão Mundial; Viçosa: Ultimato, 2004). Poucos evangélicos se dedicaram ao tema, dos quais os textos mais densos são, respectivamente, de um presbiteriano e um metodista livre: PEDREIRA, Eduardo R. Do Confronto ao Encontro – uma análise do Cristianismo em suas posições entre os desafios do Diálogo Inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1999; e SILVA, Dionísio O. da. O Comércio do Sagrado. Londrina: Descoberta Editora, 2004.
(3) Para a discussão exegética pertinente, veja-se: BARTH, Markus & BLANKE, Helmut. Colossians: a new translation with introduction and commentary. New York: Doubleday, 1994; DUNN, Jmaes D. G. The Epistles to the Colossians and to Philemon: a commentary on the Greek text. Grand Rapids: Eerdmans, 1996; LOHSE, Eduard. Colossians and Philemon. Philadelphia: Fortress, 1971; MARTIN, Ralph P. Colossenses e Filemon. São Paulo: Vida Nova & Mundo Cristão, 1984; O'BRIEN, Peter T. Colossians, Philemon. Waco: World, 1987.
(4) Adapto a discussão cristológica que propus em: ZABATIERO, Júlio P. T. Fundamentos da Teologia Prática. São Paulo: Mundo Cristão, 2006, cap. 3.
(5) As discussões sobre a “heresia” colossense giravam ao redor da dependência, ou não, dessa heresia ao gnosticismo [ideia abandonada após a confirmação de que o gnosticismo é uma religião do II século d.C.], ou às religiões de mistério — o que é verificável. Mais recentemente, vínculos com a mística do judaísmo de Qumran também têm sido detectados, de modo que a “heresia” colossense passou a ser vista como uma apropriação sincrética, por cristãos judeus, de elementos do judaísmo, cristianismo e religiões de mistério. No hino, termos como plenitude, principados e potestades, tronos e dominações, são indicativos da presença dessas ideias religiosas. Nos últimos anos do século XX, mais atenção tem sido dada à apropriação paulina dessa terminologia, destacando a contribuição positiva que tal linguagem ofereceu ao desenvolvimento da cristologia e da espiritualidade paulinas. Do ponto de vista do diálogo inter-religioso, é bem-vinda essa atenuação da discussão sobre a “heresia” e o reconhecimento de uma relação de duas mãos no processo de crítica ao pensamento combatido pelo apóstolo.
(6) Sobre a dimensão cósmico-política do hino, ver MAIER, Harry O. A Sly Civility: Colossians and Empire. In: Journal for the Study of the New Testament. n. 27, 2005. DOI: 10.1177/0142064X05052509. Acesso em 7.04.2006. Para a dimensão política da teologia do Novo Testamento em geral, pode-se consultar, entre outros: WENGST, Klaus. Pax Romana: pretensão e realidade. São Paulo: Paulinas, 1991. Quanto à linguagem política em Paulo, pode-se ver: ELLIOT, Neil. Libertando Paulo. A justiça de Deus e a política do apóstolo. São Paulo: Paulus, 1997; TAMEZ, Elsa. Contra toda condenação: a justificação pela fé partindo dos excluídos. São Paulo: Paulus, 1995.
(7) Ainda se debate muito sobre a possibilidade desta frase ser uma inserção paulina ao texto pré-paulino do hino. Do ponto de vista da interpretação do texto, isto agora não faz diferença. Cp. os comentários citados à nota 3, acima.
(8) BARTH, Karl. Church Dogmatics. The Doctrine of Reconciliation. Tomo IV/1. Edimburgo: T & T Clark, 1956, p.22.
(9) ANDERSON, Ana. F. O Evangelho da liberdade. In: Estudos Bíblicos. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 67.
(10) Na declaração Nostra Aetate, art. 5, a própria Igreja Católica reconhece a inescapável implicação missiológica deste conceito: “Não podemos, porém, invocar Deus como Pai comum de todos, se nos recusamos a tratar como irmãos alguns homens, criados à Sua imagem. De tal maneira estão ligadas a relação do homem a Deus Pai e a sua relação aos outros homens seus irmãos, que a Escritura afirma: «quem não ama, não conhece a Deus» (1 Jo. 4,8).”
http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html. Acesso em 14/10/2007.
(11) BEVANS, Stephen B. & SCHROEDER, Roger P. Constants in context: a theology of mission for today. Maryknoll: Orbis Books, 2004, p. 391-2.
(12) PEDREIRA, Eduardo R. Do Confronto ao Encontro – uma análise do Cristianismo em suas posições entre os desafios do Diálogo Inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 175.
(13) Sêneca, apud WENGST, Klaus. Pax Romana: pretensão e realidade. São Paulo: Paulinas, 1991, p. 18.
(14) Barbara Rossing, apud HANSON, Mark S. The Church: Called to a Ministry of Reconciliation. Sermão pregado em Concílio da Federação Luterana Mundial, setembro de 2005.
http://www.lutheranworld.org/LWF_Documents/2005-Council/Sermon-Opening-2005-EN.pdf. Acesso em 2.08.2007.
(15) ANDERSON, Ana F. op. cit., p. 62.
(16) FONSECA, Alexandre B. Os evangélicos e sua vivência na sociedade. In: SILVA, Serguem (org.). Missão Integral: Proclamar o Reino de Deus, vivendo o evangelho de Cristo. Belo Horizonte: Visão Mundial; Viçosa: Ultimato, 2004, p. 236s.
(17) LIENEMANN-PERRIN, Christine. Missão e diálogo inter-religioso. São Leopoldo: CEBI/EST/Sinodal, 2005, p. 163.
SOLI DEO GLORIA
AUTOR: JÚLIO ZABATIERO
EDITOR DE TEXTO: REV. RUBEN DARIO DAZA
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